Trocar experiências intergeracionais e estimular as competências cognitivas e emocionais dos mais idosos foram o pretexto para lançar a iniciativa. Mas depressa, “Letras com Afeto” tocaram no coração de quem escreveu e leu as cartas que contavam histórias de vida. As “Letras com Afeto” chegaram em tempos de pandemia e os idosos imediatamente retribuíram o gesto. Jorge, João, Eusébia e António são apenas quatro dos 71 utentes que abraçaram a iniciativa. Joana, Inês e Daniela são apenas três das 27 estudantes envolvidas de alma e coração nesta causa. A experiência não podia ter sido mais enriquecedora, por isso, estudantes e idosos esperam continuar a escrever “Letras com Afeto” e, quando a pandemia deixar, todos querem conhecer-se pessoalmente.
Sem a possibilidade de estagiar em tempos de pandemia, Joana Martins foi uma das alunas da licenciatura em Educação Social Gerontológica da ESE que trocou cartas com três idosos institucionalizados. “O feedback que recebemos dos idosos é que gostaram muito da experiência e até mostraram o desejo de nos conhecer pessoalmente, mas isso ainda não foi possível”, informou a jovem, confessando que foi uma “experiência enriquecedora”. “Tenho 20 anos e nunca tinha escrito uma carta e, por isso, foi muito especial, foi diferente, foi algo muito pessoal e íntimo”, confidenciou Joana Martins, garantindo que esta iniciativa também a ajudou a desenvolver competências. Agora que vai ingressar no mestrado, Joana Martins gostava de ter a possibilidade de continuar a abraçar este projeto.
Inês Fernandes também adorou a experiência. “Foi algo novo para todos, nunca nos tínhamos lembrado de enviar cartas e adorei receber as cartas e conhecer as pessoas mais idosas”, contou a aluna, deixando o apelo para a iniciativa continuar. A aluna, que terminou agora a licenciatura, destacou ainda a “perspetiva diferente” que teve da realidade. “Não estar em contacto com as pessoas dá outra perspetiva, porque não sabemos quem está do lado de lá, mas o certo é que sentimos que podemos contar tudo à pessoa e que vamos ser retribuídos”, confessou.
Daniela Rocha, que também terminou agora o 3.º ano da licenciatura de Educação Social Gerontológica, aproveitou para “descobrir um bocadinho da história de vida das pessoas e perceber como é que elas estão a enfrentar esta fase de pandemia”. Ouvir na primeira pessoa “foi algo diferente”. Escrever cartas também não foi fácil. “Nunca tinha feito isso antes, já que somos de outra geração e estamos muito habituados ao telemóvel”, justificou. Daniela percebeu que os três idosos com quem se correspondeu têm perspetivas diferentes em relação à pandemia. “Foi engraçado perceber como as pessoas enfrentam o mesmo problema de forma tão diferente”, referiu a aluna que vai agora integrar o mestrado na ESE e deseja continuar com este projeto.
Idosos tiveram “experiência diferente e muito enriquecedora”
Do lado de lá estiveram 71 utentes de cinco instituições. O feedback não podia ser melhor. Jorge Ferreira que recebia muitas cartas de namoradas quando era mais novo, hoje, com 89 anos, já não se lembrava de ler uma carta e muito menos de retribuir. “Para quem aprecia ter uma boa conversa, e como estamos confinados há muito tempo, sabe sempre bem receber uma carta e responder”, revelou o utente do Centro Paroquial de Promoção Social e Cultural de Darque, agradecendo à jovem que lhe escreveu, “uma menina muita gentil”, que é da terra da sua mãe. “A menina tem cultura e isso para mim é muito importante e tenho trocado muitas experiências e histórias com ela”, contou o utente, admitindo que tem sido uma “experiência diferente e muito enriquecedora”.
Também João Sousa, de 72 anos, que é utente daquela instituição vianense, tinha acabado de receber uma carta e estava “ansioso” por responder. “Já não recebia uma carta há tantos anos. Só me lembro das cartas que trocava com raparigas nos tempos de militar e tem sido muito interessante”, confirmou o idoso, mostrando-se “muito agrado” com esta experiência.
Eusébia Correira tem 83 anos e também participou nesta “excelente” iniciativa. “É sinal de que alguém se lembra de nós, de que não fomos esquecidos”, aplaudiu a utente da Casa do Areal, em Braga. A idosa foi mais longe: “É muito bom trocar algumas palavras com gente mais jovem, partilhar histórias de vida e sentir o carinho de quem nos escreve”.
Ainda da Casa do Areal, o utente António Oliveira, com 85 anos, assegurou que foi “uma ideia fantástica”. “Uma vez que não podiam estar connosco fisicamente, estas cartas vieram ajudar. Embora estejamos no centro de dia e não sintamos tanta solidão, como outras pessoas que estão em casa, é sempre bom sentir que gostam de nós e de saber mais sobre as nossas vivências”, admitiu.
A passar por uma fase “muito complicada e até desconfortável”, Leonilde Martins, utente da Congregação Nossa Senhora da Caridade, confessou que receber a carta da estudante da ESE-IPVC “foi uma terapia e um bálsamo”. Leonilde recebeu a primeira carta logo após 20 dias de isolamento e estava “muito em baixo”. A carta “chegou na hora certa” e Leonilde fez questão de felicitar a jovem pela escolha do curso. “Faz muita falta. Com a idade vamos perdendo as faculdades e precisamos muito destes jovens para nos ajudar”, agradeceu a utente, que partilhou “várias histórias” com a aluna.
Iniciativa envolveu 27 estudantes da ESE e 71 idosos de cinco instituições
“Letras com Afeto” é uma ação de correspondência intergeracional com troca de cartas entre estudantes da licenciatura de Educação Social Gerontológica e idosos apoiados por instituições (ERPI/lares e Centros de Dia). Na iniciativa, durante o ano letivo que terminou, estiveram envolvidos, para além de quatro docentes, 27 estudantes e 71 idosos participantes do Centro Social e Cultural de Vila Praia de Âncora; do Posto de Assistência Social de Alvarães; do Centro Paroquial de Promoção Social e Cultural de Darque; da Casa do Areal e da Congregação Nossa Senhora da Caridade.
“Como o público-alvo é muito limitado e praticamente estava fechado nas instituições há mais de um ano, decidiu-se fazer esta iniciativa que tinha como objetivo trocar correspondência, criando um selo e envelope personalizados para cada idoso”, explicou uma das docentes envolvidas na iniciativa, Carla Faria. Inicialmente, não estava previsto haver retorno, até porque muitos dos utentes não sabem ler nem escrever. “Mas quase todos os participantes fizeram questão de o fazer”, aplaudiu a docente.
A iniciativa, continuou Carla Faria, para além dos resultados já esperados junto dos idosos “teve um impacto muito significativo nos estudantes em termos profissionais, mas também pessoais”. Por isso, a iniciativa “tem tudo para se manter, tendo em conta os benefícios enormes que traz para todos”.
As diretoras técnicas de algumas das instituições envolvidas partilham da mesma opinião. Marta Sousa, diretora técnica da Casa do Areal, em Braga, confirmou que houve “muita recetividade” por parte dos cerca de 10 utentes envolvidos na iniciativa. “Permitiu, numa altura com muitas limitações, promover a proximidade intergeracional e com o distanciamento social que nos foi imposto esta iniciativa permitiu ainda desenvolver novas interações através de uma forma muito familiar para as pessoas mais idosas”, constatou Marta Sousa, destacando a facilidade com que os utentes fizeram “uma reminiscência” de algo que faziam quando eram novos. “Senti que os utentes gostaram imenso da experiência”, confirmou a diretora técnica, evidenciando ainda o papel que a iniciativa teve ao permitir “criar uma nova dinâmica” no centro de dia. “Quando foi possível, reabrimos com muitas limitações e com um plano de contingência ainda muito rigoroso e as “Letras com Afeto” permitiram fazer algo novo, cumprindo as regras”, sublinhou Marta Sousa, realçando o facto de se ter conseguido também “promover o estímulo cognitivo e fomentar a interação social”.
Susana Leitão, diretora técnica do Centro Paroquial de Promoção Social e Cultural de Darque, começou por evidenciar o trabalho de estágio de algumas alunas da licenciatura de Educação Social e Gerontológica da ESSE, que ajudaram na concretização das “Letras com Afeto” na instituição com 11 utentes. “Muitos dos utentes não conseguem ler nem escrever e foram as estagiárias e a animadora que permitiram realizar a atividade”, enalteceu.
A iniciativa, assegurou a diretora técnica, “foi muito interessante”, sendo que muitos utentes querem conhecer as alunas. “Identificaram-se com muita coisa que elas contavam e até mandavam recados pelas estagiárias para dar às alunas que lhes escreviam”, revelou Susana Leitão, fazendo um balanço “muito positivo”, já que os utentes “adoraram”. A diretora técnica aproveitou a oportunidade para dar os parabéns à ESE e ao IPVC por todas as atividades que têm desenvolvido junto da comunidade ao nível da terceira idade.
Já a diretora do lar da Congregação Nossa Senhora da Caridade, em Viana do Castelo, assegurou que os utentes “estão sempre recetivos” a novas atividades. Os seis utentes que participaram na iniciativa “adoraram a experiência”. “Algumas das pessoas que participaram tiveram Covid-19 e passamos uma fase muito complicada na instituição com um surto muito grande e isso também foi muito importante para eles”, referiu Andreia Ferreira, evidenciando “a importância da partilha de experiências intergeracionais”.
“Janelas ConVida” abraça novas iniciativas
De destacar que a iniciativa “Letras com Afeto” integra o projeto “Janelas ConVida”, que nasceu o ano passado em plena pandemia. Esta iniciativa, que surge no âmbito da formação superior de gerontólogos da ESE do IPVC, recuperou práticas comunitárias passadas, como o recurso às janelas ou varandas para interagir, comunicar e ajudar os vizinhos. O projeto começou no âmbito das comemorações do Dia do Gerontólogo, que se celebra a 24 de março, com o objetivo de “criar algum mecanismo de retaguarda para minimizar os efeitos negativos que sentiram logo no início da pandemia”, lembrou a docente da licenciatura, Carla Faria, destacando aqui também a importância de mostrar o papel da profissão de gerontólogo.
“Esta iniciativa faria todo o sentido com esta vertente social relevante e útil para também educar a sociedade para esta profissão”, reforçou a professora, recordando que de março a julho do ano passado, o “Janelas ConVida” funcionou exclusivamente nas redes sociais, mobilizando as pessoas e apelando à participação dos idosos. “Muitos usavam a página individualmente para pedir ajuda aos nossos estudantes”, contou.
Entretanto, o projeto “Janelas ConVida” venceu o Prémio Santander Universitário UNI-COVID19, que tinha como objetivo distinguir e apoiar projetos e ideias que contribuíssem para responder à situação de emergência, promovidas por jovens universitários e restante comunidade académica. “O prémio reconheceu a nossa boa prática e permitiu alavancar o projeto para o presencial e para a vertente mais comunitária”, referiu Carla Faria, destacando ainda que este prémio veio reforçar “o trabalho direto na comunidade, dar continuidade à iniciativa e combinar o voluntariado e a dimensão prática supervisionada em termos de estágio”.
Com o sucesso do programa surgiram outras iniciativas para além das “Letras com Afeto”. O “G_OLD: Rostos de Viana” é uma atividade de valorização do papel das pessoas mais velhas na comunidade e na sociedade, onde os alunos deram voz a pessoas anónimas, combatendo desta forma o preconceito associado à idade. O resultado pode ser apreciado numa exposição de oito minibiografias na ESE.
“Do ecrã para a coração” é outro projeto de intervenção gerontológica à distância (com recurso às plataformas digitais), que envolveu oito estudantes da licenciatura de Educação Social Gerontológica e idosos do Posto de Assistência Social de Alvarães.
Ainda no âmbito do “Janelas ConVida” surgiu a iniciativa “GerAções” com ações de apoio na comunidade que envolveram visitas ao domicílio, construção e disponibilização de recursos como materiais de estimulação, folhetos informativos, atividades orientação e encaminhamento; reforço da rede social/relacional e apoio direto em atividades de vida diária. Esta iniciativa envolveu 27 estudantes da licenciatura de Educação Social Gerontológica e mais de 60 idosos a viver na comunidade.