A anemia é um problema grave que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, entre os quais muitos portugueses – estima-se que 32% dos adultos sofram de ferropenia e 20% de anemia em Portugal. É também um problema comum entre as pessoas submetidas a cirurgia e com muitas das doenças que mais vidas roubam, como cancro, doença renal crónica, doenças cardiovasculares, gastrointestinais ou diabetes, para quem as transfusões de sangue continuam a ser uma forma de gerir a doença. Mas esta dependência de sangue tem custos, sobretudo tendo em conta os apelos constantes para a doação de sangue, que enfatizam a sua escassez. Por isso, neste Dia Nacional da Anemia, João Mairos, presidente do Anemia Working Group Portugal (AWGP), reforça a necessidade de implementar estratégias que permitam a utilização adequada das transfusões sanguíneas.
“O sangue é de facto um bem muito precioso. Tão precioso, que rentabilizar o nosso próprio sangue deve ser a nossa primeira prioridade antes de partir para outra opção“, refere. E a forma de o fazer, acrescenta, “passa por estabelecer estratégias para que não venha a ser necessário transfundir“.
“Essas estratégias constituem um conceito denominado Patient Blood Management ou, mais simplesmente, PBM, que engloba vários atores, desde os especialistas em Medicina Geral e Familiar até aos cirurgiões, passando pelos imunohemoterapeutas, patologistas clínicos, anestesiologistas… Todos devem estar cientes da preocupação em valorizar o sangue do próprio doente como primeira prioridade e planear a sua intervenção clínica em função também disso“, explica.
O que significa tratar a anemia? “Por exemplo, uma mulher com hemorragia uterina anormal que é operada sem que esteja recuperada previamente, tanto quanto possível, da sua anemia associada, vai necessariamente correr um risco transfusional acrescido. Porque não planear o tempo operatório até que se consiga estabelecer melhores níveis de hemoglobina e ferropenia, à semelhança do que se faz com outros parâmetros analíticos? É que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em populações cirúrgicas a anemia pré-operatória atinge os 75% e podia não ser assim“, esclarece.
No entanto, o presidente da AWGP recorda que, por cá, esta “não é ainda uma prática corrente”. “Existem iniciativas nesse sentido, tomadas por alguns hospitais, por serviços que se empenham, mas não há um programa nacional e é importante relembrar que existe uma base formal para a implementação de PBM. A Assembleia Mundial da Saúde, na sua Resolução WHA63.12, em 2010, insta os Estados-Membros da OMS a promover o PBM; a nossa Assembleia da República, na Resolução nº 269/2021, dá suporte legislativo para que a implementação de PBM seja uma realidade em Portugal. Agora, o que é preciso, é fazer“, afirma.
Além disso, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu um Policy Brief em 2021, que reflete a urgente necessidade de implementação de PBM em todos os Estados-Membro. Ainda em 2021, foi publicado em Portugal, em Diário da República, o Despacho nº1231/2021 que determinou a implementação do Programa de PBM nas instituições hospitalares do Serviço Nacional de Saúde.
E vantagens para a implementação de PBM não faltam. Segundo a avaliação do impacto da implementação de um programa nacional de PBM na saúde pública em Portugal, feita pelo AWGP, esta implementação pode abranger qualquer coisa como 384.704 doentes e, após um ano, reduzir a transfusão de concentrado eritrocitário em 51,2%, o que representa uma diminuição de mais de 17 mil indivíduos transfundidos.
Em termos de efetividade, a previsão é de que o PBM possa evitar 594 mortes prematuras, o que representa um ganho de 1.481 anos de vida; reduzir em 8,4% a duração do internamento e em 37,3% a de reinternamento. “As grandes mais-valias para os doentes estão bem documentadas e são uma expressiva redução da morbilidade e da mortalidade, com uma redução da necessidade de transfusões de sangue que se estima em 50%“, reforça o especialista. “Mais do que isso, constitui uma melhoria global da prática clínica, baseia-se em evidência científica e constitui mesmo uma obrigação ética. Por outro lado, para o sistema de saúde não custa dinheiro, não aumenta o volume de trabalho e gera um benefício económico que se estima em 68 milhões de euros por ano“
A implementação de um programa deste género deve ser, pois, o próximo passo, que João Mairos considera apenas ser possível com outros dois: divulgar amplamente o conceito (e essa tem sido uma preocupação do AWGP) e criar uma estrutura nacional, à semelhança do que se fez com o Plano Nacional para a Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos.
Este é, de resto, um dos temas do ‘Anemia Podcast’, uma iniciativa do AWGP lançada no Dia Nacional da Anemia, “e que terá como primeiro tema o PBM em Ginecologia“. “De duas em duas semanas sairá um novo podcast e os temas serão os mais variados, abordando assuntos desde a doença renal à cardiologia, passando pelos cuidados paliativos, o idoso, a oncologia e muitas outras áreas que têm na anemia (e também no PBM) uma área comum“, sustenta João Mairos.
Recorde-se que a anemia é uma situação clínica que resulta da diminuição do número de glóbulos vermelhos no sangue ou do conteúdo da hemoglobina. “Trata-se de uma epidemia escondida, uma vez que a grande maioria das pessoas não sabe que tem anemia, o que significa que apenas uma pequena minoria está a ser tratada“, reforça o médico. Isto apesar de o diagnóstico ser muito fácil, bastando uma pequena análise de sangue. Fraqueza generalizada, cansaço frequente, dificuldade de concentração, cabelo e unhas quebradiças são alguns dos principais sintomas que, no caso das mulheres, têm como causas as perdas menstruais demasiado abundantes ou inabituais.